Princípio da primazia do mérito e a jurisprudência defensiva (RENATO MONTANS DE SÁ)

O formalismo excessivo sempre foi objeto de questionamento pela doutrina brasileira. Se, por um lado, a forma confere segurança e previsibilidade nas relações processuais, por outro, gera um entrave, muitas vezes desnecessário ou exagerado para que o Estado exerça sua função típica, que constitui “obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” (art. 4º, CPC).

É comum verificar que muitos processos perdem precioso tempo discutindo apenas questões processuais. Some-se ao fato de bons causídicos processualistas que usam da tecnicalidade para dilatar a marcha do procedimento.

O princípio da primazia do mérito está ligado à ideia de instrumentalidade das formas e convalidação dos atos processuais.

O fim natural do processo/fase de conhecimento é com sua resolução de mérito. Por vezes o processo não chega até essa fase, pois a falta de algum pressuposto processual ou condição da ação impediram esse desiderato. Na superlativa valorização do formalismo que se cultuou no Brasil ao longo dos tempos a falta de pequenos requisitos gerava invariavelmente a resolução do processo. Assim, ocorria com a falta de traslado de alguma das peças do agravo de instrumento ou com a verificação de falta de procuração específica do advogado nas instâncias superiores (Enunciado 115 da Súmula do STJ[1]), apenas para anunciar dois exemplos.

O sistema processual brasileiro, visando prestigiar mais o conteúdo do que a forma, estabeleceu, em diversos artigos espalhados pelo Código, a primazia do mérito. O principal deles é o art. 4º do CPC, que, além de dispor sobre a duração razoável do processo, dispõe também sobre a primazia do mérito ao estabelecer que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” (grifei). Mas além dele, diversos outros artigos versam sobre a questão: arts. 139, IX, 277, 282, § 2º, 317, 319, § 2º, 338, 352, 485, § 7º, 488, 932, parágrafo único, 938, § 1º, 968, § 5º, 1.007, §§ 2º e 4º, 1.013, § 3º, II e IV, 1.017, § 3º, 1.029, § 3º, 1.032 e 1.033.

Por esse princípio o Poder Judiciário deve prover todos os esforços para viabilizar o julgamento do mérito a despeito da existência de vícios que possam impedir ou dificultar a realização dessa tarefa.

Evidente que há vícios insanáveis como a intempestividade, ausência de interesse recursal e a preclusão lógica. Contudo, deve o magistrado no caso concreto, sempre que possível, ponderar e permitir que esses vícios, quando passíveis de regularização, possam ser sanados para que se dê o devido andamento ao processo.

O princípio da primazia do mérito tem profundo impacto na denominada jurisprudência defensiva.

Por jurisprudência defensiva deve se compreender a prática adotada pelos tribunais (em especial os tribunais superiores) que muitas vezes exigem formalismos exagerados e rigor excessivo na tecnicalidade para poder inadmitir os recursos.

Contudo, parece contraditório conceituar jurisprudência defensiva olhando o sistema processual civil de forma sistemática: isso porque o princípio da inafastabilidade estabelece a proibição de se excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, vale dizer, a jurisdição assumiu a competência (dentre outros mecanismos) para dizer o direito. Entretanto, o conceito de jurisprudência defensiva, em si considerado, é justamente, a criação de mecanismos para impedir esse mesmo acesso do jurisdicionado à sua tutela.

Era comum verificar na prática situações como um erro na guia de preparo (mas com recolhimento correto), uma inelegibilidade do carimbo, o protocolo do recurso antes da intimação, a mera falta de assinatura na petição recursal ou a não juntada de procuração geravam, sem a possibilidade de prazo para convalidação, o direito de não conhecimento de milhares e milhares de recursos.

Não se nega, no tocante aos tribunais superiores, que há uma superlotação de processos e recursos tramitando, o que torna quase inviável a prestação da tutela jurisdicional por esses tribunais. Não se nega igualmente que a função desses tribunais não é a correção da justiça subjetiva, agindo como se fosse uma “terceira instância”, mas de conferir a adequada interpretação à norma e uniformizar a aplicação do direito no território nacional.

Dentre os motivos da ampliação exponencial do número de demandas no Poder Judiciário é relevante citar ao menos dois fatores: a) a amplitude conferida pela CF ao acesso à justiça e b) o natural crescimento da litigiosidade na atual sociedade. Isso, obviamente impacta nos problemas estruturais e institucionais na administração da Justiça no Brasil.

Há no país milhões de processos em trâmite, sendo que ao menos 550.000 deles estão no STJ.

Contudo, a inadmissibilidade dos recursos deve se dar pelos motivos certos (não se conhecem recursos que desejam a mera revisão da matéria e que não tenha transcendência). Não se pode, sob o argumento de demasia de recursos, peneirar de forma indevida o processamento daqueles que tenham cabimento, preencham todos os requisitos de admissibilidade e podem contribuir, com seu julgamento, para a correta aplicação do direito. Ou seja, sob a fundada justificativa de excesso de causas, não se podem criar armadilhas para a parte vedando seu direito constitucional de acesso à justiça. Ou seja, há muitos processos e uma estrutura insuficiente para cuidar deles.

Guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que um juiz de primeiro grau começasse a recusar as demandas que lhe são submetidas ou as julgasse non liquet (sem resultado) sob o argumento (verdadeiro, aliás, em muitos casos) que possui mais demandas do que tenha condição de conduzir.

É em virtude desse contexto que a jurisprudência defensiva vem sendo usada desmedidamente para a obtenção dos surpreendentes números de casos inadmitidos para superior instância. Essa indevida gestão dos processos relega a devida prestação da tutela jurisdicional.

A aplicação da jurisprudência defensiva é marcada também pela teoria utilitarista. Para essa teoria, o bem comum é mais importante que o bem individual, na busca do interesse para o maior número de pessoas (Jeremy Bentham). Michael Sandel, professor na Universidade de Harvard, exemplifica que, pela teoria utilitarista, seria possível, na Roma Antiga, jogar cristãos aos leões para conferir alegria e diversão a todos que compareceram no Coliseu, bem como torturar um terrorista e lhe extrair a verdade, com a intenção de evitar a morte e o sofrimento da população ameaçada[2].

À guisa de exemplo, é importante enumerar algumas situações teratológicas que prestigiavam a jurisprudência defensiva no regime anterior e que foram reprimidas pelo atual CPC:

Súmula 211, STJCaso o acórdão não contivesse a matéria objeto de prequestionamento a parte poderia se valer em embargos de declaração para essa finalidade (S. 356, STF). Contudo, se os embargos fossem rejeitados, a súmula preconizava que não haveria prequestionamento. O art. 1.025 do atual CPC estabelece que se considera prequestionada a matéria (ficta) mesmo com os embargos rejeitados.
Súmula 115, STJA referida súmula estabelecia que caso o advogado não juntasse (nova) procuração nos recursos de instâncias superiores, este seria considerado inexistente. O CPC no seu art. 76 estabelece que o juiz concederá prazo para regularização e o § 2º expressamente aborda “tribunal de justiça, tribunal regional federal ou tribunal superior”
Exigência do agravo de instrumentoO agravo de instrumento (físico) era inadmitido quando o agravante deixasse de juntar as peças facultativas, mas que fossem necessárias à compreensão da controvérsia. Os arts. 932, parágrafo único, e 1.017, § 3º, do CPC determinam que o juízo confira prazo para regularização quando não cumprida essa exigência.
Teoria do recurso prematuroAqui há duas situações: a) caso o recurso tenha sido protocolado antes do prazo (ou seja, advogado extremamente diligente) o recurso era considerado extemporâneo, b) caso não houvesse ratificação do recurso especial protocolado antes do julgamento dos embargos de declaração apresentados pela parte contrária, o recurso era considerado prematuro, pois não havia ocorrido o prévio exaurimento das instâncias ordinárias. O art. 218, § 4º, do atual CPC, contudo, estabelece que o recurso protocolizado antes do prazo é tempestivo. Igualmente o art. 1.024, § 5º, do CPC que dispensa a necessidade de ratificação.
Ausência de indicação do artigo da violação (Súmula 284, STFSe o recorrente apresenta recurso especial com base, por exemplo, na alínea a do art. 105, III da CF, mas não indica em sua petição, de forma expressa, referido fundamento, o recurso não pode ser conhecido, por ter ele fundamentação deficiente.
Erro no preenchimento da guiaO erro no preenchimento na guia poderia levar a deserção do recurso. Tal questão foi suprimida pelo art. 1007, § 7º, CPC: “O equívoco no preenchimento da guia de custas não implicará a aplicação da pena de deserção, cabendo ao relator, na hipótese de dúvida quanto ao recolhimento, intimar o recorrente para sanar o vício no prazo de 5 (cinco) dias”.
Ilegibilidade do carimbo de protocoloSendo “ilegível o carimbo de protocolo” não deve ser admitido o recurso, pois inadmissível (EDcl no AgREsp 495766/SP, relator Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª T.).
Afronta direta à CFA necessidade de demonstrar a denominada “afronta direta” à Constituição, como pressuposto de cabimento do recurso extraordinário fundado no art. 102, III, a, da CF. O CPC prevê a fungibilidade do recurso extraordinário para o especial e não sua inadmissão (art. 1.033).

Há, contudo, no CPC atual questões, em nosso entender, desarrazoadas em que os tribunais atuam para a manutenção da jurisprudência defensiva:

Necessidade de em agravo denegatório recorrer de todos os fundamentos, ainda que de capítulos autônomos (Súmula 283, STF)“A decisão que não admite o recurso especial tem como escopo exclusivo a apreciação dos pressupostos de admissibilidade recursal. Seu dispositivo é único, ainda quando a fundamentação permita concluir pela presença de uma ou de várias causas impeditivas do julgamento do mérito recursal, uma vez que registra, de forma unívoca, apenas a inadmissão do recurso. Não há, pois, capítulos autônomos nesta decisão. A decomposição do provimento judicial em unidades autônomas tem como parâmetro inafastável a sua parte dispositiva, e não a fundamentação como um elemento autônomo em si mesmo, ressoando inequívoco, portanto, que a decisão agravada é incindível e, assim, deve ser impugnada em sua integralidade, nos exatos termos das disposições legais e regimentais” (STJ, Corte Especial, EDcl no Ag em REsp 701.404, Min. Luis Felipe Salomão, j. 19-9-2018, maioria, DJ 30-11-2018). (g.n.) “Falta de impugnação a todos os fundamentos da decisão recorrida. Manifesta inadmissibilidade. Desistência parcial. Impossibilidade. Não há como o agravante restringir o efeito devolutivo horizontal do agravo porque esse efeito já foi previamente delimitado pelos fundamentos da decisão exarada pelo Tribunal de origem. O ordenamento jurídico admite que a parte inconformada recorra, parcialmente, de uma decisão, e, ainda, que o órgão julgador conheça, em parte, do recurso interposto. Não há, entretanto, qualquer previsão que autorize a desistência parcial, tácita ou expressa, do recurso especial após sua interposição. É manifestamente inadmissível o agravo que não impugna, de maneira consistente, todos os fundamentos da decisão agravada” (STJ, 3ª T., Ag em REsp 1.294.103-AgInt, Min. Nancy Andrighi, j. 11-9-2018, DJ 18-9-2018). Esse entendimento está em manifesta afronta a duas súmulas do STF: Súmula 292 do STF: “Interposto o recurso extraordinário por mais de um dos fundamentos indicados no art. 101, III da Constituição, a admissão apenas por um deles não prejudica o seu conhecimento por qualquer dos outros.” e Súmula 528 do STF: “Se a decisão contiver partes autônomas, a admissão parcial, pelo presidente do tribunal a quo, de recurso extraordinário que, sobre qualquer delas se manifestar, não limitará a apreciação de todas pelo Supremo Tribunal Federal, independentemente de interposição de agravo de instrumento”.
Comprovação de feriados locaisEm decisão de Corte Especial, o STJ entendeu que “é necessária a comprovação de feriado local no ato de interposição do recurso, sendo aplicado os efeitos desta decisão tão somente aos recursos interpostos após a publicação do REsp 1.813.684/SP” (Rel. Min. Raul Araújo, Rel. p/acórdão Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, por unanimidade, j. 2-10-2019, DJe 18-11-2019). Reafirmado pelo EAREsp 1.663.952

E a grande questão é que juridicamente violava a inafastabilidade (art. 5º, XXXV, CF) e o contraditório que assegura constitucionalmente os recursos (art. 5º, LV, CF). Além disso, na prática, muitos desses processos envolvem liberdade, patrimônio, honra da parte e de sua família.

Ademais, e até mais importante que o julgamento do caso concreto, a jurisprudência defensiva impede o julgamento de questões que podem formar precedentes. Isso porque, o atual método do juízo de admissibilidade estabelece que, diante de barreira formal, indefere-se quase que de forma automática o recurso sem levar em conta todos os aspectos do mérito e da repercussão do conflito.

Há casos que poderiam ter sido resolvidos com aplicação de precedentes que já tinha sido firmado e de caráter vinculante. E isso porque “O emprego generalizado da jurisprudência defensiva pelas cortes superiores como técnica restritiva do conhecimento de recursos, além de impactar o jurisdicionado, que se vê privado do acesso à jurisdição em sua dimensão material, concorre também para fragilizar a efetividade do sistema de precedentes”[3].

Se a tese objeto do recurso já foi discutida e fixada como precedente obrigatório, parece, no mínimo, contraproducente impedir o seguimento do recurso quando há a possibilidade de um precedente que se aplica perfeitamente ao conflito. Assim, na esteira defendida por parte da doutrina, a aplicação do precedente poderia ser utilizada como uma etapa do juízo de admissibilidade objetivando: a) fortalecer o sistema de precedentes; b) diminuir a litigiosidade; c) resolver em definitivo o conflito; e d) favorecer aos advogados que, muitas vezes por falta de prática, não conhecem todas as especificidades e meandros para postular nos Tribunais Superiores.

Dessa forma, os artigos mencionados que dão fundamento à primazia do mérito devem ser usados como mecanismo de afastar a indevida jurisprudência defensiva.


[1]      “Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos”.

[2]      SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Trad. Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 48-59.

[3]      SILVA, Michelle Najara Aparecida. Aplicação parametrizada dos precedentes judiciais no conhecimento dos recursos no STJ como técnica de gestão processual voltada para redução dos efeitos da jurisprudência defensiva. RePro, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 302, p. 343-376, abr. 2020.

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